0
O seu carrinho

Quando em 1950 escreve A Secreta Viagem, é para a mesma reivindicação de autenticidade que é teorizada na Távola Redonda, e que se baseia na revalorização de um amplo conceito de lirismo, que David Mourão-Ferreira aponta, como caminho alternativo a certa imediatez da inspiração e ao impuro aproveitamento da poesia para fins sociais (cf. «Notícia sobre a Távola Redonda», in Estrada Larga, 3, Porto, s.d., p. 392), que eram a consequência lógica de toda a atitude estética do neo-realismo. Pratica então – e nunca mais o abandonará – um ideal de depuração que, sem o divorciar completamente do ser social que também não abdica de ser, dá consistência ao mistério poético não apenas como revelação mas como celebração. No que, embora por vozes diferentes, é o mesmo eco clássico de Sophia que em certo, assumido intimismo se faz ouvir, com a diferença, que simultaneamente os une e individualiza na História da Literatura, de que em David a consciência técnica dos procedimentos estilísticos é um dado e de que, mais reflexiva, mais dispersa e menos contemplativa do que inquieta, esta é uma poesia que frequentemente se interroga.

Não é pois de estranhar que ao poeta e ficcionista seja presente a aguda consciência crítica – ainda de reminiscências presencistas – que nos ensaios se faz teoria da literatura (e não terá sido ocasional o seu interesse pela Presença), nas novelas desencanto ou sarcasmo, nos poemas uma muitas vezes enternecida ironia, quando não auto-ironia, num trabalho que oscila entre o instintivo cuidado e a reflexão mais culta, mais elaborada. E tudo isto atravessa Um Amor Feliz como se o romance fosse para o A. a síntese de todo o seu labor. Perpassa nuns e noutros uma espécie de libelo com o tempo, nas primeiras obras apenas aflorado, em Os Ramos Os Remos e em Um Amor Feliz já confronto aberto, que é também confronto com o corpo e com a própria cadência dos versos enquanto corpos: Digo remos vejo sombra/ Chamo ramos ao que é vivo. Como quem com o amor, com o tempo e com a morte mantém um caso.

Lisboa, que também é objecto do seu estudo enquanto tema literário, designadamente em ensaios a propósito de Eça de Queirós e Gomes Leal (cf. Tópicos de Crítica e História Literária), numa antologia intitulada Saudades de Lisboa e nas novelas de Duas Histórias de Lisboa, contribuiu muito para certa divulgação popular da poesia de David, ao constituir-se como letra de fados, alguns cantados por Amália, popularidade para que também concorreu a adaptação cinematográfica de duas novelas do livro Gaivotas em Terra, «Agora o Fado Corrido» (realização de Jorge Brun do Canto) e «E aos Costumes Disse Nada» (este filme, de José Fonseca e Costa, tem o título «Sem Sombra de Pecado»), bem como de Um Amor Feliz a filme televisivo, em que, aliás, também participa como actor.

Ao publicar nos últimos anos de vida recolhas poéticas de inequívoca tematização do erotismo (O Corpo Iluminado e Música de Cama), David Mourão-Ferreira expôs-se, «entre o estuar dos sentidos e o desencanto do nada» (Urbano Tavares Rodrigues, «Don Juan e o donjuanismo: na literatura portuguesa», in Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho, 1978), a análises injustamente redutoras da sua obra poética. E no entanto parece tão fácil reconhecer que, nessa escrita, ora lúdica, ora dramática, Das sílabas a espátula/ começa pouco a pouco/ a modelar-te em alma/ o que era apenas corpo/ [ …] e O que era apenas alma/ volve-se agora corpo («Corpoema»), tão insignificante é do ponto de vista poético a diferença.

Um Monumento de Palavras (1996) é simultaneamente reconstituição de um percurso íntimo e testamento poético, numa curiosa cronologia sentimental e poética que, já elegíaca, mas lucida, tranquilamente se enuncia e antologicamente se organiza em disco pela voz do Poeta.

Poucas vezes um escritor terá visto a sua morte tão publicamente anunciada, tão mediatica, mas sinceramente, chorada.

in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998

Avaliações

Ainda não existem avaliações.

Seja o primeiro a avaliar “A ARTE DE AMAR 1948-1962 DAVID MOURÃO-FERREIRA”

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *