A sua vida decorreria depois entre a Foz do Douro, que frequentemente informa os textos que se reportam à infância, a Casa do Alto, numa quinta perto de Guimarães que lhe proporcionaria um mais directo contacto com a terra e os ciclos da Natureza, e prolongadas estadas em Lisboa. Conviveu com Pascoaes, Correia de Oliveira, Batalha Reis, Jaime Cortesão, Aquilino, Manuel Mendes, António Nobre (que é objecto da sua atenção no 1º. volume das Memórias), entre muitos outros. E com Columbano (que lhe pintou dois retratos), António e Carlos Carneiro, já que Raul Brandão também se dedicou à pintura.
É muito difícil enquadrar a escrita de Raul Brandão em géneros literários específicos, porque nem só os seus 3 vols. de Memórias oferecem uma forte componente memorialística (da memória pessoal à memória histórico-política) e não só de ficção, mas também de uma muito sentida observação da realidade e da condição humana, vivem os contos naturalistas de Impressões e Paisagens ou mesmo livros de carácter mais onírico ou fantasmático, como Os Pobres, Húmus e A Farsa. Do mesmo modo, a mais pequena crónica, o mais pequeno apontamento – e não só os volumes de teatro – parecem atravessados quase sempre de um forte sentido dramático, ainda quando a ironia e o grotesco não deixem de estar presentes.
Raul Brandão não escreveu poesia. E no entanto, se houvesse que dar-lhe um nome que tentasse reunir, sem excluir nenhuma, todas as qualidades da sua prosa, esse só podia ser o de poeta: porque é na verdade uma profunda intuição poética que parece estar nas entranhas desta escrita fragmentária, indisciplinada e sempre movida por um obstinado, visionário mas clarividente lirismo. As suas Memórias são frequentemente memórias da sensibilidade e de uma emocionada apreensão da vida: só um poeta poderia, como ele, evocar uma laranjeira que, «de velha e tonta, deu flor no inverno em que secou». Nessa capacidade transfiguradora podemos reconhecer o nefelibata de que se reclamou, mas o que contraditoriamente lhe confere uma agudeza muito peculiar é que Raul Brandão não andava tanto nas nuvens como isso. A esse respeito é ainda Guilherme de Castilho quem, citando o próprio R. B., aponta que «é a dor em estado puro – a dor de quem sofreu como se corta uma árvore – que constitui a matéria básica da sua obra» (cf. «Três facetas da personalidade literária de Raul Brandão», in Catálogo da Exposição Biblio-Iconográfica Comemorativa do Cinquentenário da Morte de Raul Brandão, Biblioteca Nacional: Lisboa, 1980). E «nessa espécie de exactidão que não vem do cérebro nem da razão mas do temperamento e do instinto» o aproxima Gaspar Simões de Bernardim Ribeiro (J. G. S., Crítica III).
Se Raul Brandão assume a atitude decadentista de quem prevê a «morte da humanidade pela nevrose» (citado por Túlio Ramires Ferro, «Fim-do-século», in Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho) – e aí ele é uma personalidade característica da literatura do fim do século e sofre-lhe o mal –, nem por isso se deixou arredar da vida o suficiente para alguma vez não denunciar nos seus textos a mais extrema e genuína capacidade de espanto diante da mesma vida. Aí, e na confessada consciência da duplicidade do «eu», a fazer lembrar Proust e Dostoievski, reside talvez a modernidade da sua prosa, que, se formalmente é ainda marcada pela referência simbolista, já tem sido considerada simultaneamente como precursora do existencialismo, de certos aspectos do neo-realismo e até do surrealismo: «Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando […] Ainda este ano o Maio foi tão quente que toda a noite se lavrou ao luar…» (Raul Brandão, Vale de Josafat, Memórias, vol. III).











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